Houve no mundo entre todos, quer de alto, quer de baixo estado, magna e poderosa queixa a respeito de grande incontinência e procedimento e vida dissolutos dos sacerdotes que não foram capazes de se manterem continentes, e, na verdade, alcançara-se o auge com tais vícios terríveis. Para evitar tanto escândalo feio e grande e outra impudicícia, alguns sacerdotes entre nós entraram no estado matrimonial. Com razão, indicam que a isso foram impelidos e movidos por grande aflição de suas consciências, à vista do fato de a Escritura testemunhar claramente que o estado matrimonial foi instituído pelo Senhor Deus para evitar impureza, como diz Paulo: "Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa" (1 Co 7.2). Também: "É melhor casar do que viver abrasado" (1 Co 7.9). E Cristo, ao dizer, em Mt 19.11: "Nem todos captam essa palavra", indica, ele que bem sabia qual a situação do homem, que poucas pessoas têm o dom da castidade. "Pois Deus criou o ser humano como homem e mulher" (Gn 1.27). Se está ou não no poder ou na capacidade do homem melhorar ou modificar, sem especial dom e graça de Deus, por resolução ou votos próprios, a criação de Deus, a excelsa Majestade, decidiu-o muito claramente a experiência. Qual bem, que vida honrosa e casta, que conduta cristã, honesta ou íntegra daí resultou no caso de muitos, quão terrível e pavoroso desassossego e tormento de consciência muitos tiveram no fim da vida por causa disso, é coisa manifesta, e muitos dentre eles o confessaram pessoalmente. Como, pois, a palavra e o mandamento de Deus não podem ser alterados por nenhum voto ou lei humanos, por essas e outras razões e causas, os sacerdotes e outros clérigos casaram.
Também se pode provar com a história e os escritos dos Pais que na igreja cristã antiga houve o costume de os sacerdotes e diáconos casarem. Diz Paulo, em vista disso, 1 Tm 3.2: "É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher". E faz apenas quatrocentos anos que na Alemanha os sacerdotes foram compelidos à força a deixarem o matrimônio e fazerem voto de castidade. Todos se opuseram a isso com tamanha seriedade e rijeza, que um arcebispo de Mognúcia, o qual publicara um novo edito papal a respeito, quase foi morto no tumulto de uma revolta de todo o corpo sacerdotal. E aquela proibição, logo no começo, foi efetivada com tanta rapidez e impropriedade que o papa, ao tempo, não só proibiu o matrimônio de sacerdotes para o futuro, mais ainda rompeu o casamento daqueles que havia muito já estavam nesse estado, o que não é apenas contrário a todo direito, divino, natural e civil, mas, também, inteiramente oposto e contrário aos cânones estabelecidos pelos próprios papas, bem como aos mais renomados concílios.
Também se tem ouvido frequentes vezes muitas pessoas eminentes, devotas e sensatas expressarem opiniões e receios similares: que tal celibato obrigatório e privação do matrimônio, que o próprio Deus instituiu e deixou livre ao homem, nunca produziu qualquer bem, mas introduziu muitos vícios grandes e malignos e muitas maldades. Até um dos papas, Pio II, conforme mostra sua biografia, muitas vezes disse - e permitiu que lhe fossem atribuídas - estas palavras: que pode haver algumas razões por que seja o matrimônio proibido aos clérigos; mas que havia razões muito mais elevadas, muito maiores e muito mais importantes por que, novamente, se lhes devia deixar livre o matrimônio. Sem dúvida nenhuma, o Papa Pio, como homem ajuizado e sábio, falou essa palavra por causa de grave receio.
Queremos, por isso, em submissão à Majestade Imperial, confiar que Sua Majestade, como imperador cristão, digno de alto louvor, graciosamente , levará em conta que ao presente, nesses últimos tempos e dias, de que faz menção a Escritura, o mundo se tornará cada vez pior e os homens sempre mais infirmes e frágeis.
Por isso, é muito necessário, útil e cristão fazer esse exame cuidadoso, a fim de não suceder que, proibido o casamento, alastrem-se piores vergonhosas impudicícias e vícios nas terras germânicas. Pois que, sem dúvida, ninguém será capaz de alterar ou fazer essas coisas mais sabiamente ou melhor que o próprio Deus, que instituiu o matrimônio, para socorrer a fragilidade humana e prevenir a impureza.
Assim, também, os antigos cânones dizem que, de vez em quando, se deve abrandar e relaxar a severidade e o rigor, por causa da fragilidade humana e a fim de acautelar e atalhar coisas piores.
Ora, tal, sem dúvida, seria cristão e mui necessário também no caso presente. E que prejuízo poderia trazer a igreja cristã universal o matrimônio dos sacerdotes e do clero, especialmente o dos pastores e de outros que devem servir a igreja? A continuar por mais tempo essa dura proibição do matrimônio, provavelmente haverá falta de sacerdotes e pastores no futuro.
Estando, pois, fundamentado na palavra e no mandamento de Deus, isso de os sacerdotes e clérigos poderem casar e, provando a história, além disso, que os sacerdotes casavam e, havendo o voto de castidade produzido número tão elevado de feios e incristãos escândalos, tanto adultério, tão horrível e inaudita imoralidade e vícios hediondos, que até alguns homens honestos de entre os cônegos, bem como alguns cortesões de Roma, muitas vezes reconheceram o fato e, lastimosamente, alegaram que tais vícios in clero, por horrendos e desmedidos, haveriam de suscitar a ira de Deus, é deplorável que o matrimônio cristão não só tenha sido proibido, mas que, em alguns lugares , se haja tido o atrevimento de castigá-lo sem demora, como se fosse grande maldade, não obstante haver Deus ordenado na Sagrada Escritura que se tenha em toda a honra o estado matrimonial. Da mesma forma é o matrimônio grandemente exaltado no direito imperial e em todas as monarquias em que houver leis e direito. Só em nosso tempo é que se começa a martirizar as pessoas, apesar de inocentes, apenas por causa de casamento, e acresce que se faz isso com sacerdotes, que deveriam ser poupados acima de outros. E isto sucede não só contrariamente ao direito divino, mas ainda, em oposição aos cânones. O apóstolo Paulo, 1 Tm 4.1,3, chama às doutrinas que proíbe o casamento ensino de demônios. Assim, o mesmo Cristo diz, Jo 8.44, que o diabo é homicida desde o princípio. Bem concordam as duas sentenças, por forma, que realmente devem ser ensinos de demônios proibir o casamento e atrever-se a manter semelhante doutrina com derramamento de sangue.
Todavia, assim como nenhuma lei humana pode abrir ou modificar o mandamento de Deus, da mesma forma, também nenhum voto pode alterar o preceito divino. Essa também a razão de São Cipriano aconselhar deverem casar as mulheres que não guardam a castidade jurada, e diz, espist. 11, assim: "Se, porém, não querem ou não podem guardar a castidade, é melhor que casem do que caírem no fogo por sua volúpia. E devem acautelar-se bem para não causarem nenhum escândalo aos irmãos e irmãs".
Ademais, todos os cânones mostram grande leniência e equidade para com aquelas que fizeram voto quando jovens. E foi na mocidade que a maioria dos sacerdotes e monges acabou nesse estado, por ignorância. (Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: Ulbra; Porto Alegre: Concórdia, 2006, pg. 42-44).
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